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quarta-feira, 13 de abril de 2011

Sobre a Crise na OSB

A Profissão de Músico
(por Thomas Hansen, segunda, 11 de abril de 2011 às 10:42 em http://www.facebook.com/notes/thomas-hansen/a-profiss%C3%A3o-de-m%C3%BAsico/206667869357190)

Pouca gente sabe direito como a profissão de músico se estabeleceu. Num momento tão crítico para essa profissão, envolvendo demissões em massa, questionamento de autoridade, protestos dentro e fora do palco e tantas flechas cruzando os céus (sem falar da rede!) vindas de dois lados da mesma coisa, faço a minha reflexão sobre isso tudo.

Ser músico não era exatamente fácil antes da Revolução Francesa. Músicos eram servos, vivíamos durante o dia enterrados em bosta de cavalo até os tornozelos, para esquentar os pés durante a lida na lavoura. De noite, roupas elegantes para tocarmos nos salões. Um pouco antes disso, só tocávamos nas igrejas e nas feiras - e os que davam sorte de fazer música em nome de Deus eram com certeza mais afortunados que seus colegas mambembes, que viviam das esmolas e da caridade de poucos. Vez por outra, um músico da corte se destacava a ponto de criar fama, tomava coragem e abandonava seus senhores. Os que foram bem sucedidos entraram na história (Giovanni Punto teve o maior enterro de seu tempo), mas para cada exceção tivemos centenas de "regras", morrendo de fome ou "retaliados" por seus ex "proprietários".

A Revolução Francesa criou o "conservatório musical", onde se formariam os músicos (ninguém mais poderia exercer a profissão sem ser "formado" pelo conservatório). Isso foi bom e ruim: de um lado, criou a semente da regulamentação da profissão, de outro, tirou a música do seio familiar - até então, se aprendia música em casa, ou na igreja. A consequência mais infeliz disso foi o nascimento de linguagens de expressão musical que já não evoluíam dentro da sociedade, e a música agora chamada "erudita" se afastou cada vez mais de seu público, até batermos num século em que, para entendermos determinadas obras, precisamos de quase tanto estudo quando seu compositor.

Liszt inventou o solista - virou o piano de lado no palco, para que suas incontáveis fâs (e as que ele pagava para o serem) admirarem seu perfil, tanto quanto a música que tocava. O artista se tornava tão importante quanto a música que produzia. Mas Liszt produzia as duas coisas: a arte e o artista.

Até quase o fim do século XVIII, éramos vassalos. Fazíamos a música de fundo dos salões, sinfonias eram tocadas aos pedaços. O único lugar em que a música era, sim, absoluta, era na ópera. Mas a ópera era (e é) mais que música: a ópera funde as artes, escancara emoções, escarnece dos ricos, exalta os simples, diverte, nos faz em lágrimas...

E a apreciação musical existia, sem dúvida! Olhares se voltavam para os jovens talentos, para obras originais, novas formas...  E foi assim que aos poucos o palco foi se transformando, a arte se transformando no centro das atenções.

Em algum momento da história (Aylton Escobar, em seu doutorado [2010], defende que o responsável foi Wagner), surgiu o maestro como conhecemos hoje. A figura que antes meramente marcava o tempo para que os músicos não se perdessem passou a ir muito além: tomar decisões musicais, uniformizar idéias e estilos, trazer à orquestra sutilezas que eram possíveis até então apenas na música de câmara. E isso foi bom, muito bom. Compositores puderam ir além, músicos puderam ir além, e de repente, o principal instrumento do romantismo se tornou a Orquestra.

Mas houve lados ruins. Já que alguém na orquestra era responsável por ser músico (num sentido amplo da palavra, conhecer estilos, formas, não apenas tocar seu instrumento), muitos se acomodaram na posição de "instrumentistas", reforçando uma idéia de que cabe ao maestro, e não ao músico, fazer música. Pra completar, o maestro se transformou no grande interlocutor da orquestra, no programador cultural, no avaliador, no grande líder. E tudo isso pode ser bom ou ruim, depende muito dos "quens" e dos "por quês". Quem quiser saber disso direito, que leia "O Mito do Maestro", de Norman Lebrecht.

No Brasil, nossa história não é muito diferente. No período colonial, éramos negros alforriados, filhos de brancos com negros ou padres. A profissão existia, sem dúvida (há notas de pagamento para os músicos que tocaram na inauguração da Igreja Matriz de Santo Antônio, em Prados-MG, datadas de 1704!), mas era relegada ao clero (compositores) e aos desfortunados (músicos).

A vinda da coroa portuguesa com certeza melhorou a vida de nossos músicos. Em que se pese que a côrte importava volta e meia músicos para lecionar e compor por estas bandas (Marcos Portugal, Sigismund Neukomm), o dia-a-dia da música nos salões era de brasileiros. Vassalos, sem dúvida, mas melhor pagos. Nos anos que se seguiram, num Brasil tão longínquo quanto uma travessia de 3 meses de barco, viu-se em nossos palcos execuções do Requiem de Mozart, da Norma de Belini e tantas outras obras relevantes do repertório europeu.

Foi no segundo império que um Regente preocupado com a importação de cultura européia (notadamente a francesa) começou a estimular nossos filhos a estudar música em terras distantes. Já tínhamos então Sociedades de música, sementes de nossas orquestras que reuniam músicos diletantes pelo amor às grandes obras. E lá foram pr'além mar Carlos Gomes, Nepomuceno, Henrique Oswald,  Brasílio Itiberê e tantos outros ilustres desconhecidos...

As Guerras nos trouxeram músicos e escolas. Imigrantes italianos, franceses e alemães se empregavam nas orquestras e sociedades musicais, davam aulas aos nossos futuros músicos. A profissão era mal paga, mal vista.

E foi nesse cenário que nasceu a Orquestra Sinfônica Brasileira. Fruto de anseios de professores de música do Rio de Janeiro, abriu seus olhos sob o jovem maestro José Siqueira - ardente defensor dos direitos profissionais dos músicos do Brasil.

Siqueira foi um grande perseguido político. Suas convicções ideológicas (era comunista engajado) foram motivo para ser sucessivamente afastado de todos os projetos em que se envolvia, e o auge desse absurdo foi justamente o que deveria ser seu maior momento: formado em direito, lutou para legalizar e regulamentar a profissão de músico, buscando as garantias trabalhistas há tanto sonhadas por todos nós. E viu seu sonho - A Ordem dos Músicos do Brasil - ser arruinado pela Ditadura, transformado que foi em um grande depósito de nossa vergonha profissional, comandado por mais de 50 anos por uma corja tão interessada na contribuição mensal, e tão pouco em contribuir com nossas carreiras.

E agora vemos, 70 anos depois de sua criação, a orquestra idealizada por um defensor da nossa carreira mergulhada em uma crise que reside no extremo oposto do interesse público, do interesse dos músicos, do interesse da música.

É claro que buscamos excelência. É claro que buscamos mais qualidade, melhores condições de trabalho, desafios profissionais. Muitos de nós se acomodaram SIM, mas não necessariamente por desinteresse, por falta de amor à profissão: muitas vezes somos vítimas de nossos próprios empregos, tocando em orquestras em que a mediocridade prima, sem expectativa de crescimento profissional, apenas contando os dias para nossa aposentadoria. E aqui somos, muitas vezes, culpados por não sacudir a toalha, lutar por melhoras, por programações mais instigantes, pela tão falada qualidade.

Mas qualidade também envolve investimento. Para sermos bons músicos, precisamos nos reciclar, adquirir instrumentos melhores, estudar novas referências. Praticamente todas as grandes empresas possuem programas de aperfeiçoamento profissional, planos de bolsas para estudos, ações de formação continuada, tudo visando que seus profissionais sejam melhores e se mantenham atualizados. Por que uma grande orquestra não deveria ter o mesmo? Investir em seus músicos? Apostar em sua competência, em vez de simplesmente chamar o próximo da fila?

É claro que se seu salário é bom o suficiente, você mesmo vai investir em sua carreira. Até porque você quer, obviamente manter o seu emprego, e sabe que para isso precisa estudar. Qualquer emprego se baseia na premissa de que você dá conta do recado da sua função, e isso não está errado. Mas também, antes de te mandar embora, uma boa empresa vai avaliar a sua experiência, suas habilidades e competências, e vai investir em você para que você atinja e supere o que se espera de você. E aí, meu caro, é com você, mostrar que você tem muito a dar, o quanto você pode crescer.

Finalmente, você precisa parar um dia. Você precisa ter tranquilidade para chegar num momento de sua vida e decidir que os mais jovens merecem espaço, que você agora deve por seus alunos em seu lugar. E para isso acontecer, é preciso dignidade. Você precisa viver além dos seus dias na orquestra, e se espera que o se aposentar não signifique passar o resto da vida tocando em qualquer bico que lhe garanta o almoço. Você deu sua contribuição à sociedade, é mais que justo que essa lhe respeite por isso.

E ao mesmo tempo, há o respeito; o mesmo respeito que queremos, devemos dar. E isso vale para todos, músicos, administradores, maestros. Alguém postou esses dias por aqui que respeito virou artigo raro. Infelizmente, isso é verdade, e não adianta se procurar quem faltou primeiro com o respeito, pois não é o erro de um que justifica o do outro (estuprar o estuprador? roubar o ladrão? matar o assassino? quem é melhor que quem?). E também infelizmente, todos perdem a razão quando o respeito se retira do palco.

Mas o que mais me assusta é ver essa briga dividida entre "classe dos músicos" e o que quer que seja a outra parte. Acaso não somos todos músicos? Maestros, instrumentistas, compositores, cada um pega a sua bandeira e briga por seu lado? Quando é que todos esses atores vão resolver agir em conjunto em defesa da grande profissão que temos na música? Talvez essa tenha sido a  maior lição que José Siqueira nos deixou: um maestro lutando pelos músicos mostra que, no fundo, músicos somos todos.

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